domingo, 30 de julho de 2017

A Mangueira, a democracia racial e sua contestação



O lançamento do livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, em 1933, marca a introdução do ideal da democracia racial na sociedade brasileira. Segundo este pensamento, o Brasil seria o "paraíso das raças", onde as três etnias viviam em harmonia e o racismo era coisa extinta instantaneamente no ato da assinatura da Lei Áurea de 1888. Tal discurso caiu feito luva na mão da elite branca dirigente do agitado país, afinal negar a existência do racismo era o meio mais viável de disfarçá-lo, mesmo quando ele se fazia presente até nas leis - como, por exemplo, na restrição legislativa da imigração africana e asiática ante o incentivo a imigração europeia na Primeira República.

 Com o incentivo do aparato do governo e das mídias dominantes, a ideia da igualdade racial se enraizou na sociedade brasileira de forma que, até mais da primeira metade do século XX, quem vislumbrava argumentar que o Brasil era um país racista era reprimido, sendo ignorada para tanto toda a marginalização evidente e imposta desde abolição.

 Como parte característica da formação da sociedade, o Carnaval não ficaria de fora dessa idealização. No ano de 1962, a Estação Primeira de Mangueira - primeira campeã do Carnaval do Rio de Janeiro e, junto com a Portela, a maior escola de samba da época - com seus milhares de componentes, em sua grande maioria negros e pobres, sai na Avenida Rio Branco gritando a plenos pulmões a democracia racial através do samba-enredo "Casa Grande e Senzala", que não poderia fazer maior referência ao livro de Freyre.

"Pretos escravos e senhores
Pelo mesmo ideal irmanados
A desbravar
Os vastos rincões
Não conquistados
Procurando evoluir
Para unidos conseguir
A sua emancipação"

O trecho denota uma suposta "irmandade ideológica" entre escravos e senhores objetivando a emancipação consequente da abolição da escravatura. Contudo, essa visão benevolente do processo ignora o contexto internacional de desintegração do cruel sistema escravista mundial (o Brasil foi o último país da América do Sul a decretar a abolição), o embate entre a resistência escrava e o já organizado movimento negro.

"Louvor

A este povo varonil
Que ajudou a construir
A riqueza do nosso brasil"

Já nesse trecho do samba é reconhecido um espaço ao negro na construção da riqueza nacional. Mas, segundo o ideal da democracia racial, o lugar dos negros nessa obra de nacionalidade era o da força bruta, do trabalho braçal, enquanto o branco se ocupava em pensar a nação. Essa visão naturalizava a divisão racial do trabalho e legitimava a elite branca governando o país. A produção historiográfica adotou oficialmente esse discurso e essa perspectiva conveniente e distorcida foi consagrada também academicamente.

Fazia-se necessária então uma revisão social e acadêmica e a partir da metade do século XX surgem grandes críticas à democracia racial. Pesquisadores como Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso (SIC) contestam essa dissimulação do escravismo e do racismo brasileiro, que só o fazia crescer. Entretanto, essa nova perspectiva, ao retratar o escravo herói, acaba por cair no extremo oposto da visão benevolente. O negro ainda era uma coisa. O romantismo ainda estava nas lentes de análise.

Foi preciso então uma revisão da revisão, a qual surgiu na década de 1980, principalmente com os trabalhos Robert Slenes e Sidney Challoub, que, ao abordar o escravismo e o pós-abolição, trataram de descoisificar o escravo ou liberto. O negro agora era visto enquanto humano em suas relações sociais no sistema escravista e no pós-abolição.

Novamente, o samba e o carnaval-tão particularmente negros e populares- não perderiam o trem que atropelou o romantismo. Em 1988 - um carnaval especial devido aos 100 anos da instituição da Lei Áurea - a de novo e sempre pioneira e do povo Estação Primeira de Mangueira vai à Marquês de Sapucaí vociferando através do eterno Jamelão o negro e sua luta, cantando, apontando e questionando com as milhares de gargantas da agremiação carnavalesca mais popular do mundo a participação do negro na construção do Brasil enquanto nação e as consequências de um processo de abolição excludente. Para essa manifestação popular o samba-enredo foi o magnífico "Cem anos de Liberdade - Realidade ou Ilusão?", do qual um só trecho resume todo a contestação social à História tradicional e oficial.

"...Será... 
Que a lei áurea tão sonhada 
Há tanto tempo assinada 
Não foi o fim da escravidão 
Hoje dentro da realidade 
Onde está a liberdade 
Onde está que ninguém viu 
Moço 
Não se esqueça que o negro também construiu 
As riquezas do nosso brasil" 

Nesse contexto, nota-se que o Carnaval serviu como uma ponte entre a academia e o povo. Levando ou trazendo demandas de um espaço para o outro e assim diminuindo a enorme distância instituída entre eles.

Por destino, naquele especialíssimo carnaval a Verde e Rosa competira e fora derrotada por meio ponto pela Vila Isabel com o seu também negro e histórico "Kizomba, Festa da Raça". Mas o segundo lugar não apagou o marco: Mangueira fez história. O carnaval é história. Uma aula de história na avenida